A Pequena Sereia | Quem realmente é Ariel?
5 Julho, 2019Na última quarta-feira, a Disney anunciou que a cantora e atriz Halle Bailey foi escolhida para viver a princesa Ariel na adaptação live-action do clássico A Pequena Sereia. Como esperado, a escolha de uma mulher negra causou uma desnecessária polêmica que vem se estendendo ao longo da semana. Ao que parece, ainda estamos muito longe de compreender a importância e o positivo impacto social de decisões como essa.
Dessa forma, uma série de justificativas completamente distorcidas foram levantadas para tentar deslegitimar a escolha de Bailey para o papel de protagonista, envolvendo até mesmo a origem do conto original de A Pequena Sereia, que é dinamarquesa – embora, vale lembrar, o live-action não seja diretamente baseado no conto de Hans Christhian Andersen, mas sim na animação de 1989 da Disney. Tais discursos tornam-se ainda mais absurdos quando se pensa, ainda, na ausência do mesmo engajamento do público em torno dos inúmeros casos de embranquecimento de personagens ao longo da história do cinema ocidental.
Chega a ser cômico observar como essas justificativas bizarras partem de pessoas que afirmam serem grandes fãs da história da sereiazinha, mas não fazem sentido algum quando confrontadas com os acontecimentos do filme da Disney. E menos ainda quando se fala do conto de Andersen, utilizado de forma totalmente ignorante para justificar uma origem étnica branca e europeia que supostamente deveria aparecer na escolha da atriz que vai viver a personagem.
Quem é a Ariel de A Pequena Sereia (1989)?
Ok, vamos aos fatos. Muito embora seja baseado no conto de Hans Christian Andersen, escritor dinamarquês que publicou a história da sereiazinha em 1836, a versão animada da Disney apresenta uma versão muito diferente da protagonista. A Ariel de Walt Disney está longe de ser a personagem “calma e sossegada” descrita por Andersen, embora partilhe de sua aguçada curiosidade. É na versão de 1989 que o live-action de A Pequena Sereia se baseia e não no material original. Neste caso, a personagem é apresentada como uma seria de pele clara, olhos azuis e cabelos vermelhos.
No entanto, pensando na aparência da protagonista, a importância desse aspecto para o enredo da história é tão irrelevante que a Ariel de cabelos avermelhados que conhecemos nem deveria ter existido. Na verdade, o plano original do estúdio era fazê-la assim como a maioria de suas predecessoras: loira. A mudança aconteceu por conta do filme Splash – Uma Sereia em Minha Vida (1984), sucesso de bilheteria, cuja protagonista é uma sereia de cabelos loiros, interpretada pela atriz Daryl Hannah. Para evitar a associação entre as duas personagens, a Disney optou por modificar sua protagonista, o que ainda seria visualmente positivo para a animação, pois o vermelho de seus cabelos teria bem mais destaque no esquema de cores proposto para o filme.
Além disso, quem realmente se diz muito fã de A Pequena Sereia da Disney já deve ter notado que não há nenhum apontamento geográfico na animação. Na verdade, a única referência que que remete a localização do filme está no sotaque do personagem Sebastião. No original, o caranguejo vermelho é interpretado por Samuel E. Wright e apresenta um forte sotaque jamaicano – local bem distante da Dinamarca de Andersen. Aliás, na série animada de televisão também produzida pela Disney, o personagem reafirma sua origem caribenha em mais de um episódio. Independente disso, a única referência que temos para a origem de Ariel é o reino fictício de Atlântida, cuja localização exata no mundo real, se houver, nunca foi especificada.
A sereia… dinamarquesa?
Como já afirmado, o live-action que será estrelado por Bailey não será diretamente baseado no conto de Andersen, mas sim em sua adaptação. No entanto, não é impossível que essa nova versão da história traga elementos da fábula original – e já que este argumento foi levantado de forma absolutamente distorcida para deslegitimar a escolha da atriz, vamos tratar um pouco sobre ele.
Em primeiro lugar, mais uma vez, não há referências geográficas específicas na história original de Ariel – ou melhor, da sereiazinha de Andersen, já que o próprio nome da protagonista é uma criação da Disney. Você mesmo pode verificar isso, lendo a fábula de Andersen completa em português através deste link. A origem geográfica da jovem sereia na história é completamente fictícia e, além disso, inverossímil (trata-se de uma fábula infantil, afinal).
A localidade do reino dos seres do mar, para o autor, era em um local absolutamente profundo e remoto, “onde nenhuma âncora pode alcançar”, mas iluminado pela luz distante do Sol e cheio de vida – coisa completamente impossível na vida real, na qual o fundo dos oceanos é totalmente escuro e não muito hóspito para a maioria dos tipos de vida marinha. Aliás, a própria localização do reino do Príncipe Eric – que também recebeu nome somente na animação – é desconhecida.
De qualquer forma, se esperássemos que o live-action fosse fiel à sua origem mais remota, veríamos um filme bastante diferente quando A Pequena Sereia estrear em 2021. Pensando na aparência, a “Ariel” que veríamos teria o cabelo branco-prateado, a ponto de ser confundida com um cisne quando avistada de longe por humanos, e não o famoso cabelo avermelhado da sereia. Além disso, não veríamos seus companheiros marinhos, Linguado e Sebastião, e nem boa dos personagens da animação da Disney que conhecemos e amamos.
Ao invés disso, teríamos uma história com um fundo religioso, no qual uma sereiazinha deseja conseguir uma alma imortal, além do amor de um príncipe humano. Veríamos sua língua sendo cortada por uma feiticeira, seus pés sangrando enquanto ela anda e dança sobre pernas e sua morte no final, quando ela se dissolve em espuma do mar após o príncipe casar-se com outra, somente para virar um espírito do ar e mais tarde, ascender para o reino celestial. Talvez isso “estragasse a sua infância” bem mais do que ter uma protagonista negra, não acha? Ou tudo bem, contanto que ela seja branca?
Além disso tudo, precisamos levar em conta o que o conto de Andersen representa. Já há muitos anos discute-se a possibilidade do autor de A Pequena Sereia possuir interesses românticos homoafetivos. Há, inclusive, diversas cartas de Andersen para o Duque de Copenhagen que parecem evidenciar essa conclusão. Sabe-se que as investidas românticas do autor não tiveram muito sucesso e esse sentimento de rejeição é algo presente em algumas de suas fábulas, tal como em A Pequena Sereia ou em O Patinho Feio. Em outras palavras, podemos especular que o conto da sereiazinha talvez fosse, até mesmo, uma analogia para a rejeição que Andersen sofreu por outro homem. Seria, então, mais adequado colocar um homem para interpretar a Ariel e torna-la mais fiel ao que o autor tentou representar? Ah, me pergunto o que a Ministra Damares pensaria sobre isso…
Adaptação ou transcrição?
Por fim, vale apontar o fato de que o live-action que está sendo produzido trata-se de uma adaptação, não uma cópia exata do conto ou da animação. A Ariel até mesmo poderia ser, originalmente, uma ruiva dinamarquesa! Mesmo que ela fosse – e não é – a Disney ainda teria total liberdade para produzir uma versão diferente se quisesse. Aliás, a seria poderia ser asiática se quisessem. O estúdio possui total liberdade criativa para trabalhar em cima dessa história. Trata-se pura e simplesmente de uma opção, e eles têm o direito de representarem a personagem como quiserem.
É claro que não seria adequado fazê-lo caso a origem étnica da personagem fosse absolutamente relevante para o enredo, com seria no caso da Pocahontas, por exemplo. Ou se a personagem fosse de um grupo minoritário tradicionalmente sub-representado nos cinemas. A Disney poderia até mesmo fazê-lo, mas o impacto social e cultural do filme seria completamente outro – e bastante negativo na verdade. Por conta isso, argumentos do tipo “mas e se fizessem a Tiana branca?” não fazem sentido algum. Colocar uma mulher branca para representar uma personagem negra não é, nem de longe, a mesma coisa que fazer o contrário, pois isso se relaciona com uma opressão estrutural e apagamento de uma população sistematicamente marginalizada – e existem vários textos na internet sobre isso, caso você queira se informar melhor sobre o assunto.
Como fã, existem várias coisas que podem preocupar você na nova versão live-action de A Pequena Sereia, mas tenha certeza: Halle Bailey não é uma delas! Fica aqui a nossa expectativa para o lançamento do filme e, principalmente, para não precisar mais falar sobre esse assunto no futuro.