Coluna | Filmes de super-heróis e o impacto na forma de enxergar a política em outras culturas
20 Janeiro, 2022Usando como base o pesquisador Douglas Kellner focado na área de cultura midiática e teorias críticas sobre o assunto, um dos pontos desse texto é resumir o que deixamos passar ao longo do tempo durante algumas produções, explicando o que seria todo o conjunto de visão passada através das telonas e como entendemos que a ideologia está presente em todas as produções culturais.
Dessa forma, nem tudo que entendemos como diversidade e representação cultural na nossa visão, pode ter sido bem aplicada como parece ter acontecido.
“O cinema oferece a visão de uma perspectiva, reproduzindo modos convencionais de ver e experimentar o mundo ou permitindo que alguém observe coisas que não tenha visto ou experimentado. Os filmes dão um enquadramento ao mundo, retratando ação e movimento e, assim, fornecem panoramas de tempo e vistas da história.”
Douglas Kellner.
Quando uma pequena parcela de espectadores tentam se desfazer da correlação ideológica no campo midiático, usando o argumento que tudo é meramente um produto de entretenimento somente para fins de diversão, mais aquele produto em questão vai dar o que falar politicamente. Já que nos últimos 10 anos, vimos a busca incessante de ‘blockbusters’ em trazer aspectos diferentes do habitual hollywoodiano, acompanhando a agenda progressista onde precisam seguir as constantes mudanças, mesmo que superficiais em trazer diversidade para as telas em busca de novos públicos alvos.
Filmes como Mulher Maravilha (2016), Pantera Negra (2018) e Capitã Marvel (2019) são exemplos da corrida representativa. Simplesmente sucessos de bilheterias, eles estão são referenciados em todas as partes, sendo Pantera Negra e Mulher Maravilha verdadeiramente um dos maiores desses últimos anos.
Desde filmes bobinhos e roteiros simplistas, alguns conteúdos são abafados com efeitos visuais e uma bela mensagem de amor ao próximo como parte do sentimento de ter feito um trabalho incrível. De certa forma é incrível e esses impactos são imensuráveis, mas ainda esconde muito debaixo do tapete e é importante ouvir o que algumas vozes têm a dizer sobre essas produções. Para quem já é adulto é mais fácil simplesmente ignorá-las, enquanto os mais jovens vão crescer com uma visão de que esteve numa época de perfeito empoderamento. Mensagens muitas vezes escondidas nessas boas ações que jamais julgaríamos na produção, a fim de não estragar a famosa experiência.
Um exemplo é que, apesar de tecer críticas aos filmes que serão citados adiante, todos são divertidos e traçam um caminho diferente entre eles, sendo visualmente lindos e deslumbrantes, cumprindo a premissa de diversão e entretenimento que foi proposto ao público. E levaram tanto eu, quanto outras pessoas, aos cinemas ao redor do mundo com um único propósito.
Porém durante o período de pós-pandemia, alguns filmes de Hollywood foram as últimas opções de volta aos cinemas no meio asiático, por exemplo. Alguns não chegaram a ser lançados e outros não tiveram grandes resultados. A partir disso diversas discussões acerca de um “boicote” foram levantadas. Palavra usada erroneamente pela mídia para definir o fracasso de produções hollywoodianas dentro do campo asiático que eles tanto visaram alcançar.
O cinema pode fornecer também uma visão mais crítica e profunda sobre os seres humanos, as relações sociais ou os processos históricos, assim como fazem muitos dos mais famosos filmes contemporâneos.
Douglas Kellner
Para nós Brasileiros, e toda a América Latina, somos constantemente alvos de esteriótipos aplicados em filmes, desde uma pequena participação ou citação que induz o espectador a achar que aquele comportamento é geral de todo um país diverso, e existe um sintoma persistente de como aquelas produtoras nos enxergam através dos filtros amarelos e da sexualização do nosso corpo, desde os frequentes papéis associados a crimes e tráficos.
Essa visão também tem se perpetuado ao contar histórias passadas no Oriente Médio sempre no olhar através de Guerras, escombros e frequentemente associados ao terrorismo. Os asiáticos constantemente atingidos por essa narrativa, sempre representados de forma mítica ou dentro de cidades que parecem ainda não saíram de séculos passados ou os que só vivem melhor quando se refugiam na América para sobreviver.
A insistência nesse tipo de conteúdo acaba normalizado e criando falsas impressões de fora, pois poucos espectadores de fatos iriam se interessar fora do campo midiático a pesquisar essas origens de processo de criação. E assim como a gentrificação urbana é importante para elevar números de turistas e atrair atenção para um local em específico através de de citações e referências, a mídia pode também propagar o racismo nessa mesma situação.
No último ano continuamos a ser expostos a filmes de produção gigantesca e que de certa forma tiveram e ainda têm um impacto cultural gigante, já que seus respectivos ‘marketings’ são bombardeados em nossa direção e vamos constantemente perpetuar a sua mensagem e suas boas notas no Rotten Tomatoes. E o que todos eles tiveram em comum, foram as abordagens históricas que resolveram usar para complementar seus roteiros. Junto a essas escolhas, tivemos também uma crescente e visível críticas em torno desses acontecimentos, começando por produções famosas como Mulan (2020), Shang-Chi (2021), Viúva Negra (2021), Eternos (2021), O Esquadrão Suicida (2021) e Mulher Maravilha 1984 (2020)
O Live Action de Mulan trouxe desconfiança ao público chinês como mais uma das produções que advém de estúdios ocidentais que visam lucrar acima de tudo, chegando ao limite em como pode ser um absurdo uma produção inteiramente branca tentar reformular uma fábula que antes já sendo introduzida como animação e completamente ofensiva, volta a acontecer sem qualquer tipo de consultoria para avaliar esses erros.
Esse limite é refletido no desinteresse do público em assistir novas produções que passam a mesma mensagem, visto que esses estúdios nem conseguem mais alcançar a bilheteria de produções nacionais asiáticas que estão beirando ao 1 bilhão de dólares em lucros, apenas com exibições em seus países de origem.
Agora o estúdio Disney/Marvel, anuncia o mais novo filme do super herói asiático Shang-Chi e novamente volta ser alvo de críticas por continuar no mesmo caminho de Mulan. Shang-Chi originou-se dos quadrinhos da Marvel Comics, através de muitos estereótipos do “Perigo Amarelo” dos personagens Fu Manchu e o Mandarim, que teve sua origem alterada nos filmes para evitar alguns contratempos, mas o fato da Marvel decidi trazer eles ao cinemas foi e é motivo de diversas controvérsias.
Shang-Chi (2021) é uma típica jornada de herói bem filmada, e assim como Mulan, se baseiam em contos Wuxia, que é nada menos que um gênero literário e cinematográfico originário da China, com muita Luta, Fantasia e diversas artes marciais.
Com roteiro simples e com certos cuidados ao retratar as relações familiares de um jovem chinês que mora no Estados Unidos, onde se escondeu do seu pai que usou os filhos para treinamento, até que virassem armas para seu próprio serviço. Se afastando da sua terra natal, Shaun vive como qualquer outro americano normal, luta pra sobreviver em seu trabalho e esconde suas maiores habilidades até que seu pai manda os capangas atrás dele para que ele retorne e seja o que ele sempre treinou para ser.
Entretanto os erros se repetem e não de forma que o público esteja familiarizado, Xu Shang-Chi vive uma fantasia que apresenta os mesmos velhos tópicos, só que bem filmados e aparentemente sem piadas inofensivas de Kung Fu e olhos puxados.
Os estereótipos retornam nos retratos que temos da China de um país ultrapassado, que vivem através de grandes muralhas e cercada de mistérios em constraste com a beleza tecnológica da Califórnia (EUA). A beleza do filme concentra-se em campos míticos de beleza exótica, criaturas que são associadas a piadas de um inglês que vive num porão.
Ora outras diversas criaturas que possuem histórias diferentes e que provavelmente nunca se encontrariam para além de uma guerra, qual nenhuma fábula original da cultura do país as colocariam para viver em harmonia no meio de uma floresta de bambu acessível de tempos e tempos. Ou seja, o filme atende aos gostos e exigência do público NOSSO, mas não se preocupa exatamente em respeitar essas histórias.
Viúva Negra também não foge dos grandes clichês que se repetem nos cinemas desde os anos 60 e são famosos em filmes de ação como James Bond, Missão Impossível e Jason Bourne. Sendo ela uma das personagens mais adoradas dos Vingadores, e enorme popularidade, ainda assim para quem é fã de cinema Russo, compreende a dificuldade de digerir a colocação dos países que compunham outrora a antiga União Soviética e seu povo sempre como vilões de alta periculosidade.
Assim como a personagem desde sua criação nos quadrinhos é vista como uma assassina sexy e altamente treinada para derrubar qualquer nação e fruto da Guerra Fria, para os filmes teve sua origem drasticamente alterada para compor o quadro de heróis americanos e patriotas. Personagens como o Guardião Vermelho que demonstra sua total insatisfação política e ideológica sendo retratado como um fracasso experimental, ao contrário do sucesso advindo do Capitão América, retratado como seu adversário geopolítico na esfera global.
O mais recente sucesso de bilheteria da Marvel é sobre ex-super-heróis soviéticos na Rússia tentando lidar com seu passado. Mas para os cinéfilos russos, “Viúva Negra” não captura muito de sua cultura ou visão de mundo.
csmonitor.com (site de crítica e notícias especilizadas)
Aos olhos dos cidadãos Russos, esse filme leva apelidos carinhosos e o considera como algo que serve para assistir sem levar em conta o processo de criação, onde você desliga o cérebro e apenas se conecta com as cenas de ações explosivas e personagens carismáticos. Vilões impiedosos, sedentos por poder, moralmente vazios e as assassinas sedutoras, a KGB ainda age secretamente e capangas brutais estarão lá e apenas podemos ignorar o fantasma do comunismo criado por algum roteirista da CIA, que deve estar presente em pelo menos todas as obras de ação que são inspirações para esse tipo de filme.
O Esquadrão Suicida por outro lado, vai além e tenta equilibrar entre o estereótipo de americano corrupto com o salvador, além de utilizar a trama dos latinos que mais parecem selvagens em guerras e que merecem serem explodidos sem nenhum tipo de remorso. Incluindo uma sátira que o tiro sai pela culatra onde uma secretária é apenas muito peitos, que combina com o fetichismo exagerado da própria direção que está sempre referenciando uma cena com tópicos sexuais.
Resumindo o babado, o segundo filme da equipe Esquadrão Suicida é infinitamente melhor que o primeiro filme, mas ao mesmo tempo é uma das maiores propagandas grotescas e imbecis americanas e de como eles enxergam os conflitos políticos dos latinos, deixando de forma clara e absurda as suas intervenções. Usando sátiras e referências a umas das invasões fracassada da CIA em Cuba, desde a escolha da filmagem no Panamá, que também é uma das maiores ironias do estúdio, já que em 1989 o Estados Unidos invadiu o país com a missão denominada “Operação Justa Causa”. Ao longo disso, também temos uma guerrilheira latina que mesmo chateada com as ações inconsequente dos fanfarrões, se unem a eles com objetivo de derrotar o problema que eles mesmo trouxeram para cá.
Por último temos Eternos, um filme com belíssimas fotografias e com uma história promissora e bastante filosófica, o que o difere bastante de outros filmes que tende a deixar suas mensagens em tópicos mais genéricos.
Transitando entre o ser e o homem diante de figuras divinas, poderes e responsabilidades, o filme também se destacada com o maior ‘casting’ diverso de uma produção de Herói, tendo o primeiro casal e herói abertamente homossexual e negro da Disney, com direito ao beijo que demonstra o lado humano desses robôs programados outrora para levar nossa sociedade a destruição.
O filme da cineasta chinesa Chloe Zhao, vencedora do último Oscar de melhor filme e direção por Nomadland (2019), ainda é visto como muito uma produção muito americanizada. Na visão de cidadãos chineses Eternos perde seu sentido quando existe uma preocupação da diretora em levantar principalmente um tópico de lamentação pela bomba de Hiroshima e suas vítimas, que matou milhares de japoneses em 1945.
“Chloé Zhao esquece as memórias dolorosas que os invasores japoneses trouxeram para a nação e retrata uma parte da história do ponto de vista dos invasores”, “como podemos lidar com esse tipo de informação?”.
globaltimes.cn (Site de notícias e críticas especializadas)
Historicamente, China e Japão tiveram conflitos que levaram os dois países a ter uma tensão política, principalmente porque na visão chinesa, os Japoneses não se consideram invasores, tampouco reconhecem ‘O Massacre De Nanquim’. Um dos mais violentos momentos da história do povo Chinês, ocorrido no ano de 1937, durante a segunda guerra mundial deixando mais de 300 mil vítimas para trás.
Através das redes sociais e também de sites especializados em críticas, eles respaldam a diferente forma de enxergar esses problemas e como cada um os classifica e reclama de acordo com a sua prioridade. É muito comum que nós aqui vejamos esses filmes como um grande passo dado e algo mais extraordinário já feito.
“Você está me dizendo que os Eternos estavam bem em assistir séculos de escravidão e colonização, mas Hiroshima foi onde Phastos traçou a linha e finalmente desistiu da humanidade.”
movie.douban.com (Umas das Plataforma de Critica chinesa mais influente do continente)
Do outro lado vemos comentários falando sobre o quanto os chineses são exigentes e nada os agrada de certa forma, visto que uma cultura e povos que são constantemente apagados, descontextualizados e retratados de formas absurdas e demonizadas para o nosso próprio entretenimento. O que confirma que a nossa preocupação não está no respeito, mas no tanto que esses produtos vão faturar no fim de semana.
Outro ponto importante a frisar é que essa quase “apropriação” da cultura alheia não visa a cessão e a quebra de tensões políticas ou acabar com a xenofobia de forma que reproduzimos sem pensar. Pouco importa se essas histórias que usamos para dar vida às nossas ficções e faturar sobre os deixam satisfeitos. Desde que me entregue bons visuais, efeitos e um leader asiático ou uma mulher que enfrentou os preconceitos e sexismos do aeronáutica, então estamos quebrando muitos tabus.
Kellner, principal ponto de partida que levou esse texto a ser escrito, defende ferozmente que nós vivemos em um tempo dominado pelo espetáculo e para conquistar a audiência, eles não podem ignorar certos assuntos e as expectativas do seu público. Muitas ideias são transmitidas através da mídia com dualidades e que poucas vezes podem ser captadas a fundo, mais exemplos são o personagem do Capitão América do Sam Wilson, um homem negro que precisa chegar ao seu limite e provar seu valor diante de militares e lideranças governamentais para levar o manto e escudo adiante.
Temos uma mulher que também é uma deusa poderosa e salva duas crianças árabes de um tanque de Guerra, um herói chinês que sequer toca em suas origens ou uma mulher que também deixou o seu país e só volta nele para destruir uma conspiração criada dentro do imaginário apenas do ocidente.
O que essas coisas tem a mostrar realmente senão uma propaganda política negativa de outros locais? E se a cultura está em constante desenvolvimento e mudança, como é enxergar a mesma coisa desde os anos 60, com os mesmos tópicos de perseguição através das lentes do cinema alimentando essa história? Isso define que estamos satisfeitos com as estratégias comuns adotadas de replicações de idéias distorcidas.
O que preocupa é como algumas generalizações contidas através da visão se propagam facilmente como originais e fiéis, fazendo com os outros sejam pareçam exageradamente “reclamões” por não aceitar essas narrativas mais.
O fato dessas produções existirem não incomodam a ninguém no âmbito do entretenimento e não quer dizer que essas produções não possuam seus méritos principalmente com a descoberta de diretores novos e sensacionais que tem a chance de seguir o seu trabalho num meio que quase não abre espaços para novas possibilidades e conquistas.
Não deixar se acomodar e não ignorar o que outros têm a dizer é importante para não cairmos em falácias por questões “políticas” e acabar reproduzindo e aceitando mais discursos de que esses filmes são boicotados por serem chatos e exigentes, ou que grande estudios não vão mais fazer coisas do tipo por causa da recepção.
É extremamente necessário dentro dentro de qualquer área de mídia seja ela nos cinemas, televisão e quadrinhos, que o espectador não apenas se aliene, mas que livremente possa separar informações que são boas daquelas que são construções ideológicas que mantem a hegemonia cultural.
Links para consultas e referências:
Tags de pesquisas: 永恆族 (Eternals); 尚气与十环传奇 (Shang-chi e a lenda dos dez anéis);
www.globaltime.cn
www.people.cn
http://www.xinhuanet.com/
https://movie.douban.com/
https://weibo.com/
Livro e artigos científicos de referências:
A cultura da mídia – estudos culturais por Douglas Keller.
Daros, Otávio A transição da crítica imanente para a transcendente nos estudos de Douglas Kellner sobre cinema e televisão. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação.
Sou cinéfila e meu filme favorito é indie e pouco conhecido, ele se chama Barbie Fairytopia.