Crítica | Dickinson: Eu sou Ninguém! Você é Quem?
27 Dezembro, 2021Dickinson é uma série criada pela Alena Smith para a Apple TV+, a série conta a história de Emily Dickinson (1830-1886), considerada, talvez, a mais importante voz feminina da poesia de língua inglesa.
Mesmo se passando no século XIX, a série traz uma pegada moderna e descontraída para o drama da jovem poeta, que viveu grande parte de sua vida reclusa, e só teve toda sua obra publicada após sua morte.
Fazendo jus a grandeza de Emily Dickinson, cada episódio é nomeado com uma parte de algum poema da Emily, e que casa perfeitamente com a história a ser narrado, também vale destacar a trilha sonora, que mesmo subindo os créditos ainda diz muito sobre o que acabou de ser visto. A série traz, tal como a própria Emilly, uma visão moderna do século XIX, e a trilha sonora é fundamental para dar vida a esse aspecto, trazendo nomes como Taylor Swift, Billie Ellish, Mitski, dentre outros. O que é importantíssimo, visto que Emily Dickinson é considerada uma poetisa do ouvido.
Em sua poesia, após muito ser estudada, foi percebida a combinação de ritmos métricos e múltiplos modos de repetição sonora, ela era uma eximia pianista, isso influenciou em seus poemas (é mostrado na série diversas vezes a Emily tocando piano). Exemplo disto é o segundo episódio da primeira temporada, intitulado “I Have Never Seen Volcanoes”, que leva esse nome devido ao seguinte poema:
Nunca vi “Vulcões” –
Mas, quando Viajores contam
Como essas velhas – fleumáticas montanhas
Usualmente tão mansas –
Trazem dentro – pavorosa Artilharia,
Fogo, e fumaça, e balame,
Tomando Aldeias por desjejum,
E apavorando Homens –
Se a quietude é Vulcânica
Na face humana
Quando sobre dor Titânica
As feições estancam –
Se a aflição que arde latente
Afinal não for debelada,
E a Vinha palpitante
Ao pó for lançada?
Se algum amoroso Antiquário,
Na Manhã da Ressunção,
Não vai gritar com alegria “Pompéia!
Retorna aos Montes!
E termina com a música “Your Best American Girl”, da Mitski.
Dickinson mostra Emily como ela era: uma poetisa e uma mulher à frente de seu tempo. A direção de arte casa perfeitamente com a mensagem que a série quer transmitir, os figurinos e a ambientação são de tirar o chapéu, e toda a parte técnica da série é impecável.
Emily Dickinson teve por volta de dez poemas publicados em vida, e mesmo assim de forma anônima, o restante de sua obra foi publicado após sua morte, a própria Emily tinha certa aversão à publicação, a mesma até escreveu em um de seus poemas “Publicação – é o Leilão / Da Mente Humana”. E a série aborda bastante esse tema, trabalhando bastante em cima do tema “Ninguém”, como a própria escreveu em um de seus poemas:
Eu sou Ninguém! Você é Quem?
Você – é Ninguém – também?
Então somos um par!
Não conta! Podem te expulsar!
Que chato – ser – Alguém!
Se mostrando – como o Sapo –
Na beira do Brejo –
Sempre com o mesmo papo!
Os poemas de Emily são usados ao longo da série de forma bastante criativa, colocados especialmente nos momentos em que foram escritos ou pensados, abordando a arte surrealista da poetisa, tal como seus passeios com a Morte, interpretada em uma participação especial do Wiz Khalifa:
Já que não pude parar para a Morte –
Ela parou gentil, a Carruagem –
Que só levava Nós Duas –
E a Imortalidade –
[…]
Ou em sua amizade com a Abelha, no qual Emily cita em vários de seus poemas, eis um exemplo:
Não contei ainda ao jardim –
Antes que me dê na telha.
Ainda não tenho coragem
De me abrir com a Abelha –
[…]
As metáforas usadas pela Emily em seus poemas se tornam realidade em Dickinson, Alena Smith consegue trazer para as telinhas toda dor e o pesar vivido pela Emily de uma forma descontraída, tornar a imaginação de Emily Dickinson e toda sua poesia algo visual é pura arte.
Emily Dickinson não é só a voz mais importante da poesia inglesa, ela também é uma das primeiras da comunidade LGBTQIA+, a maioria de seus poemas foram dedicados e enviados para Sue, sua cunhada, e também o amor de sua vida. Ao que tudo indica Emily e Sue mantinham um relacionamento amoroso, e esse é um dos principais arcos da série.
Hailee Steinfeld traz a vida Emily Dickinson de uma forma excepcional, brilhantemente, junto a Ella Hunt, que traz vida a Susan Gilbert, a Sue, que atingiu o auge de sua atuação na segunda temporada da série. Ambas possuem uma química incrível em tela, é nítido o amadurecimento pessoal e do relacionamento que compartilham ao longo das três temporadas.
Não é a primeira vez que uma adaptação aborda o relacionamento amoroso de Emily e Sue, mas afirmo, com toda a certeza, que é a primeira vez que vi algo sólido ser construído de maneira tão linda diante meus olhos. O respeito no qual esse relacionamento foi tratado pela produção e por toda parte técnica nas construções da cena é exemplar e importantíssimo, representatividade importa e Dickinson mostrou isso fazendo com que várias pessoas se sintam vistas e representadas.
Emily e Sue passam por suas descobertas, enfrentam seus medos e traumas, enfrentam seu inferno pessoal, inclusive com um episódio especial da Emily, tal como Dante, descendo até o inferno. O final do episódio nove, da terceira temporada, conseguiu fechar esse ciclo bem amarradinho que começou com o já citado acima, episódio dois da primeira temporada. Tal episódio termina citando um poema:
Todas as cartas que escreveria,
Não seriam melhor que isto –
Sílabas de Veludo –
Sentenças de Pelúcia –
Abismos intactos, de Rubi –
Ocultos, Lábio, para Si –
Faz de conta fosse um Colibri
Que sugasse só – a mim –
E já subindo os créditos temos a música “Ivy”, da Taylor Swift. Ou seja, a delicadeza com a qual foram pensados os detalhes da série é que torna Dickinson uma das melhores séries da atualidade.
Além do relacionamento amoroso e polêmico de Emily, há também a abordagem de seu relacionamento com sua família, e isso se intensifica na terceira temporada, onde a Emily se encontra mais reclusa em casa, mais apegada à família: seus pais e seus irmãos.
Todo o elenco de Dickinson possui certa química singular: Toby Huss como Edward Dickinson, Jane Krakowski como Emily Norcross, Anna Baryshnikov como Lavinia Dickinson e Adrian Enscoe como Austin Dickinson. E nessa última temporada, especialmente no episódio nove, após Emily descer ao seu inferno pessoal, ela conseguiu se estabelecer com sua família. Mesmo o relacionamento meio conturbado que ela sempre tivera com sua mãe, através de sua poesia, de sua arte, Emily conseguiu estabelecer certa conexão.
Mesmo pertencendo a uma família mais progressista Emily encontra muitas dificuldades por ser mulher em pleno século XIX, e isso é muito trabalhado na relação com seu pai na terceira temporada, e no episódio nove temos, em minha opinião, a melhor atuação da Hailee Steinfeld na temporada, numa discussão com seu pai acerca do tema.
Além de abordar a relação dos Dickinson’s, a série também aborda Guerra de Secessão, que foi a Guerra Civil norte americana, e também o período no qual Emily Dickinson mais escrevera poemas em sua vida. E na série acompanhamos Henry, interpretado por Chinaza Uche, um homem negro que vai à guerra e lidera o primeiro grupo de soldados negros armados.
O último episódio encerra de forma poética o ciclo de Emily Dickinson, tal como a descreveram, trancada em seu quarto, em seu vestido branco e escrevendo vários e vários poemas, poemas esses que ficaram para eternidade, poemas tão intensos que tiram o fôlego ao serem lidos, e encerro este texto com um dos meus preferidos:
Dois – foram duas vezes – imortais –
O privilégio de poucos –
Eternidade – obtida – a Tempo –
Reverteu a Divindade
Que nossos Olhos ignaros
Concebam a qualidade
Do Paraíso superlativa –
Comparando-se com eles –
Este poema foi enviado a Sue, aproximadamente no início de 1864.
Os poemas aqui incluídos foram retirados do livro “Poesia Completa Emily Dickinson Volume I: Os fascículos”, cuja tradução se deu por Adalberto Müller.
Todos os episódios de Dickinson estão disponíveis no serviço de streaming da Apple TV+.
Uma jovem estudante de Direito e apaixonada pelo Superman. Sou apaixonada também por quadrinhos e super-heróis porque vejo neles uma forma de mudar o mundo, nem que seja só um pouquinho. Tento passar esse sentimento pelos meus textos, espero que gostem!
Análise sensacional, você se supera viu. Amei que você conseguiu colocar todas as 3 temporadas no texto e ficou ótimo. Parabéns! Que venha mais séries boas e consistente para nós LGBTQIA+