O cinema de Céline Sciamma e uma análise técnica de ‘Portrait of a Lady on Fire’

O cinema de Céline Sciamma e uma análise técnica de ‘Portrait of a Lady on Fire’

15 Maio, 2020 0 Por Vanessa Burnier

Céline Sciamma é uma diretora francesa que estudou cinema em uma conceituada escola chamada La Fémis, apostando no estilo minimalista, ela conta histórias que permeiam a fluidez de gênero e identidade sexual das mulheres durante o período da infância e da adolescência. Ela é conhecida por lançar atores em seus filmes, repletos de silêncios cortantes, suas obras tem uma elaborada misancene, e Tomboy um dos seus filmes de maior repercussão é o exemplo do domínio absurdo que ela tem para lidar com o elenco formado principalmente por crianças. Sciamma é engajada na causa LGBT, seu primeiro curta Pauline (2009) foi realizado como parte de uma campanha anti homofobia em parceria com o governo francês. Ela tem uma habilidade impressionante para abordar temas complexos e polêmicos como sexualidade, identidade de gênero e conturbadas relações parentais, e isso tudo faz dela uma das diretoras queridas em festivais importantes no mundo e seu primeiro filme Water Lilies (2007) foi exibido na sessão ‘Um Belo Olhar’ do festival de Cannes, além de ter recebido três indicações ao César (o oscar francês). O filme retrata a descoberta da sexualidade e a montanha russa de sentimentos de três jovens de 15 anos, elas estão vivendo mudanças, experimentando novos sabores nessa fase de desejos à flor da pele chamada adolescência. Para Sciamma, moda e estilo são parte fundamental da caracterização de um personagem, por isso que ela trabalha como figurinista em todos os seus filmes e também tem parte fundamental na escolha de trilha sonora de seus filmes, sempre trabalhando com o Para One (Jean-Baptiste de Laubier) diretor e produtor de música eletrônica. Ela criou sua própria trilogia, em Girlhood (2014) ela encerra seus trabalhos com a abordagem nessa fase da vida ou seja infancia e adolescencia, então temos Water Lilies, Tomboy e Girlhood como parte integrante da trilogia. Todos seus filmes tem uma cena marcante:

Lírios D’água (2007): Floriane, a garota em destaque dançando no meio do quadro banhado em tons azuis é o objeto de desejo de Marie, uma idealização ou seja algo inalcançável, a cena representa um momento de resolução, um fechamento para a trama principal, a piscina surge como uma forte simbologia, por ser onipresente na história que tem como plano de fundo uma equipe de nado sincronizado.

Reprodução: Haut et Court

Tomboy (2011): Lauri garota que se identifica com o gênero masculino se apresenta como Michael, observa as crianças jogando futebol e pede para participar do jogo, que no filme é praticada apenas por garotos. Habilidoso, com o tempo que ele começa a se sentir à vontade para tirar a camisa, é uma cena construída com momentos tensos, já que ele não quer e não pode ser descoberto. A cena discute às representações de gênero, construções de personas sociais e as dinâmicas de grupo durante a infância. 

Reprodução: Pyramide Distribution

Girlhood (2014): A câmera desliza horizontalmente de forma a observar o grupo, a música nada energética, sem nenhum som em cena, não se ouve a conversa entre elas, o foco aqui é o gestual e a interação entre as amigas. Quando a câmera corta para o plano aberto vemos que elas estão no Arco da Defesa em paris, se estabelece então a contraposição entre o moderno representado pelo monumento e o grupo, que representa uma frança imigrante desprivilegiada e excluída socialmente. E então de forma leve a câmera registra na sequência os passos de dança coreografados e com influência africana, um momento único e genuíno de felicidade naquele grupo. 

Reprodução: Pyramide Distribution

Análise técnica de Portrait of a Lady on Fire

O filme se passa no século 18, onde Marianne uma jovem pintora recebe o trabalho de pintar Héloise sem ela saber para o seu casamento, enquanto Marianne passa os dias a observar os detalhes de Héloise com o intuito de fazer as pinturas dela, elas acabam se aproximando. Um elemento que chama a atenção logo de início são as composições, cada enquadramento que é proposto pelo filme é basicamente uma pintura, a Claire Mathon para criar o sistema de imagem que ia ser usado dentro do filme, pesquisou várias pinturas da mesma época para trazer a essência da pintura para a obra. E isso é uma questão muito interessante no filme, como a proposta inicial da Céline não era revisitar o século 18 mas sim colocá-lo sobre um novo ponto de vista, o ponto de vista da atualidade, tanto composição como a exposição de cada quadro é algo incrível, a exposição ao longo de todo o filme é muito controlada, não se tem por exemplo tantos Highlights no filme com o Filtro Satin, este filtro reduz significamente o contraste da imagem, além de segurar um pouco na alta luz, então não tem imagens estouradas ao longo de todo o filme, nem aquele branco rachado e clipado e quando se tem esse quadro na alta luz isso aproxima o público para uma linguagem visual que é muito unica das pinturas, grande partes das vezes tem-se uma tonalidade de contraste que é muito bem espalhada dentro do sensor da câmera. A câmera que foi usada foi uma Head Monster rodada em 7k e que tem um sensor aproximado do que seria a superfície de uma 35 milímetros, a escolha da Claire por essa câmera específica veio de longas pesquisas com a equipe de produção, para entender como as cores iriam funcionar nesta câmera, então a escolha das lentes foi específica, justamente para chegar naquela textura visual proposta pela Sciamma lá no início da produção. 

Reprodução: Little White Lies

Um outro aspecto brilhante desse filme foi com o trabalho de luz, nos ambientes internos, onde acontecem as pinturas e as grandes partes das interações entre as personagens, é gravado dentro de um ambiente a 10 metros de altura, então existiam certas dificuldades para iluminar e sendo uma construção antiga e que também é um monumento histórico, a equipe de grip não podia pendurar nada no teto, então foi construído uma plataforma para que as estruturas de luz conseguissem ficar da altura da janela que eles precisavam iluminar. Como não era uma produção com muito dinheiro ou seja era Low Budget as soluções ficam um pouco limitadas, mas isso não impediu a construção do sistema visual que esse filme traz para o público. A forma como a luz é moldada traz uma volumetria em cada elemento da cena, e isso é muito interessante, porque se tem uma fonte principal de luz, porém a partir do momento que essa luz entra dentro do ambiente pela janela, é utilizado Flags, que são as bandeiras que colocam a sombra onde você não quer que a luz chegue e a Claire também usou de Difusão e Rebatedores, fazendo com que essa luz volumétrica que chega até a personagem destaque a mesma de uma forma surreal. O proposta inicial era justamente emanar as pinturas do século 18, que quando se observa, a luz quase que vem da pessoa, esse conceito acaba sendo redesenhado pela luz da Claire nesse filme. 

Reprodução: AFCinema

Além do visual, o trabalho de câmera que é feito dentro desse filme é absurdo, a escolha da Céline foi para utilizar takes mais longos, então se tem dinâmicas dentro das cenas de Misancene, na parte de Blocking, a movimentação que esses personagens tomam perante a câmera, e tudo isso é muito bem arquitetado e bem coordenado pela diretora, para conseguir trazer toda a emoção e essência que o filme se propõe, então ao longo das cenas existem poucos movimentos de câmera, e quando aparecem é um Tracking Shot, é a câmera indo trás da personagem e na frente da personagem mas também fazendo um acompanhamento do movimento, grande parte dos movimentos são ancorados ao tripé, e existe algo que é muito importante, que é a altura que vemos todas as cenas, de qual altura presenciamos o desenrolar da trama, e a preferência foi colocar a câmera na altura dos olhos, então se olha os personagem nos olhos. E isso chama a atenção para os olhares ao longo do filme, a câmera desvenda os pensamentos dos personagens e por isso que se tem takes mais longos apenas em um olhar, mas o que esse olhar que dizer? Até que ponto a Marianne estava olhando para a Héloise com o intuito de observa-lá apenas para a pintura? Até que ponto ela olhava com o senso de admiração pessoal? Em algumas cenas se tem algumas composições mais planas de suas personagens conversando e mesmo assim nós temos o olhar entre elas, porém tem outros enquadramentos que são colocados ao longo do filme, que se assume uma postura muito próxima do olhar da personagem, o que torna tudo mais pessoal. A combinação que a Claire usa nas lentes, de colocar lentes mais comprimidas e com uma distância focal um pouco maior para diminuir a distância entre as duas personagens acaba criando composições super interessantes e inteiramente ligadas com o sentimento daquela cena e com o sentimento do personagem naquele momento.

Reprodução: Supo Mungam Films

O filme tem muito predominância de ciano, então os tons azuis existentes são muito marcantes, tantos nas roupas, quanto nas partes cenográficas, porta, a própria cortina que esconde o retrato, então se tem uma relação muito profunda com o azul, porém com iluminação que a Claire constrói para as cenas, a parte da vestimenta fica muito evidente e consegue equilibrar nas cenas internas se colocando a cenografia mais puxada para o azul e as roupas com cores diferentes para dar mais contraste. O fogo é muito presente nas cenas noturnas onde se tem a predominância da temperatura de cor de 3200K mais puxadas para o laranja, tem-se alguns pontos azuis que remetem a noite, então tem luzes de janelas que marcam a parede com sombra mais puxadas para o azul fazendo essa mistura de cores. Toda essa técnica se traduz em um filme muito completo visualmente, tanto na parte da direção de arte, quanto na parte cinematográfica, na parte da direção, na própria misancene. Retrato de uma Jovem em Chamas é uma obra de arte!